Existir na contemporaneidade
A sociedade do início do século XXI organizou-se de um modo que o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han denominou de sociedade de desempenho. A antiga sociedade disciplinar ou de controle deixa de fazer sentido frente à ideia de um “poder ilimitado”, marcado pela oferta infindável de shoppings centers, academias de ginástica e bancos. Nesse sentido, o paradigma da disciplina e da punição transforma-se no paradigma do desempenho e do esquema positivo de poder, pois percebeu-se que o sujeito inserido nesse novo contexto é mais rápido e produtivo. Ele é impelido por um sistema que o bombardeia a todo momento com a ideia de que podemos tudo, e acaba esgotado em uma busca infindável por cada vez mais.
Segundo o filósofo, essa característica é uma das principais responsáveis pelo aumento do número de casos de patologias como a depressão, o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e a síndrome de Burnout. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que, entre os anos de 2005 e 2015, o número de casos de pessoas com depressão cresceu 18%, sendo que, no Brasil, aproximadamente 6% da população sofre com a doença, a maior taxa da América Latina.
O aumento na busca por ajuda especializada é um reflexo desse cenário; pessoas que nunca fizeram terapia estão procurando por apoio psicológico. Entretanto, ao iniciar as sessões, algumas delas podem ficar frustradas ou até abandonarem o processo terapêutico por não conhecerem as diferenças existentes entre as abordagens, já que suas formas de enxergar os indivíduos e a sociedade e seus objetivos terapêuticos podem ser distintos. Nesse sentido, cabe a pergunta que intitula o artigo: afinal, a psicanálise é para todos?
As recomendações de Freud
Freud, em seus escritos sobre a aplicabilidade da psicanálise, afirmou que o tratamento não era indicado para idosos devido ao acúmulo de material psíquico e o tempo que seria necessário desprender a fim de analisá-lo. Entretanto, ao longo de mais de um século de recomendações, não só a técnica foi enriquecida por autores pós-freudianos, capazes de compreender as sociedades contemporâneas, como a constituição do próprio sujeito se alterou; os idosos de 1900 e os de 2020 definitivamente não são os mesmos! Outro exemplo quanto a aplicabilidade da técnica reside no tratamento de crianças. Apesar do pai da psicanálise não ter aprofundado sua teoria nesse sentido, diversos autores como Donald Winnicott e Melanie Klein expandiram os estudos freudianos, consolidando técnicas psicanalíticas para esse tipo de atendimento.
No entanto, as recomendações freudianas não foram só quanto aos idosos; o autor delimitou uma série de questões fundamentais para que uma psicanálise se estabeleça, como a duração e a frequência dos atendimentos, o pagamento, o término da análise, entre outros. Dessa forma, é necessário apresentar alguns desses aspectos a fim de compreender a quem se destina a psicanálise.
O tempo na análise
A preocupação de Freud com o tempo do tratamento psicanalítico é muito clara: o autor discorreu sobre esse ponto em diversas partes de sua obra, até finalmente escrever o texto “Análise terminável e interminável”, em 1937. Ele iniciou os escritos de forma categórica: “a experiência nos ensinou que a terapia psicanalítica – a libertação de alguém de seus sintomas, inibições e anormalidades de caráter neuróticas – é um assunto que consome tempo”. Nesse sentido, Freud considera importante comunicar essa questão ao paciente antes que ele se decida pelo tratamento; é necessário alertá-lo sobre as complexidades da análise para que ele não se sinta enganado, já que se trata de um processo que demanda tempo e comprometimento.
Mas nem por isso a psicanálise determina uma duração específica para o tratamento: é importante que o paciente possa interromper o tratamento quando quiser. Entretanto, Freud deixa claro que a terapia não será bem-sucedida se for paralisada com apenas uma pequena parcela do trabalho concluída. O tempo do processo psicanalítico está relacionado à “lentidão” com que se realizam as mudanças profundas na mente e a atemporalidade dos processos inconscientes. O tratamento é pautado pelo tempo das lembranças e das elaborações, que possibilitam mudanças ao sujeito com relação a seu próprio sintoma.
Nesse tempo, que se configura como ressignificação, as histórias de cada um não são uma linha reta; o que já passou se transforma em realidade psíquica e se inscreve de forma indefinida, adquirindo sentido posteriormente. Esse tempo, que não é cronológico, se mistura a outros tempos: condensa-se, desloca-se e cria novos sentidos.
A ideia de cura
Se o tratamento psicanalítico não tem prazo definido, ele é ao menos capaz de curar? Talvez essa seja uma das questões mais pulsantes da psicanálise, e a resposta depende do que se entende por cura. Atualmente, a cura é entendida como a eliminação de uma doença ou sintoma, uma regeneração completa proporcionada por algum agente externo. A psicanálise, entretanto, entende o conceito de cura como tratamento, se aproximando da origem da palavra latina curare, que significa ‘cuidar de’, ‘olhar por’.
Nesse ponto de vista, a psicanálise compartilha do pensamento de Hipócrates, frequentemente considerado como o “pai da medicina”, que entendia a cura como um cuidado de si, da relação corpo-alma, consigo mesmo e com os outros. Portanto, a cura na psicanálise é entendida como a elaboração do sintoma, a passagem do mal-estar para um mínimo de prazer.
Freud defendia que o analista é capaz de fazer muito, mas não de determinar exatamente quais resultados produzirá. Ao iniciar o tratamento, as repressões existentes se movimentarão, sendo de responsabilidade do terapeuta supervisionar, auxiliar e facilitar esse processo que segue sua própria rota, não sendo possível escolher a direção ou a ordem dos acontecimentos. Portanto, é necessário pensar na clínica a partir de sua etimologia grega: inclinar-se na direção do mundo, fazendo da psicanálise a investigação do sentido do homem, do mundo e da cultura ao mesmo tempo em que promove a cura.
Quem pode se beneficiar
A psicanalista iugoslava Radmila Zygouris afirma que tanto as demandas por análise quanto as formas de patologia mudaram, visto que hoje a demanda é cada vez maior por um lugar onde se possa falar. Na sociedade do desempenho e da positividade excessiva, torna-se impossível compartilhar as infelicidades da vida: as dores causadas por separações e desemprego, por exemplo, que até então eram consideradas “normais”. são patologizadas, automaticamente tornando o sujeito que sofre em um sujeito doente. Nesse sentido, a autora defende que a psicanálise parte do pressuposto de que o sujeito está, desde o início, em condições de “pensar”, não como atividade intelectual, mas um pensar verdadeiro sobre si mesmo e em sua semelhança e diferença com o outro.
Pensar sobre a própria vida possibilita que as infelicidades ordinárias não se instalem como patologia. Portanto, a análise funciona como um campo aberto, uma nova composição que se dá entre dois espaços subjetivos, do analista e do analisando. Se essas são as condições da psicanálise, talvez ela realmente não seja para todos; não no sentido freudiano relacionado à idade cronológica, mas sobre o que o sujeito espera de uma terapia.
Antes de ingressar em uma terapia psicanalítica, é preciso saber que as construções de tempo e de espaço são diferentes, que os objetivos não são imediatos e palpáveis e que os sintomas não serão eliminados como na medicina. Dessa forma, quem procura a psicanálise precisa estar disposto a pensar verdadeiramente sobre sua vida e seu lugar no mundo, pois entrará em contato com pensamentos e desejos que, por vezes, a consciência não consegue tolerar.
Por fim, conforme aponta Zygouris, “a psicanálise não pode ser nada além de uma longa viagem. A destinação (como destino) importa menos que as paisagens percorridas”.